domingo, 19 de outubro de 2008

Parábola

Era uma vez um escravo chamado Desejo. Vivia nu, pés acorrentados, coveiro dos sonhos irrealizados. A Moral reinava e era seu algoz. Ria-lhe na cara, desprezava seus gemidos.

O reino era ordenado, calmo e feliz. Alheio a duvida. A Moral era uma boa rainha. Somente o Desejo conhecia-lhe a outra face.

Sucede que, numa noite, abrindo a cova, o Desejo se feriu gravemente com a enxada e chorou como um menino. A Moral, ouvindo aquele pranto, ficou muito abalada. Viu, pela primeira vez, inocência no Desejo e resolveu libertá-lo da corrente que lhe prendia os pés.

O Desejo, que sempre fora escravo, mas nem por isso menos criativo, se aproximou. Espelhou, iluminou e finalmente seduziu a rainha Moral. A Moral, que era séria, sorriu. E apaixonou-se pelo próprio sorriso, refletido nos olhos do Desejo.

Viveram por um tempo assim, os dois opostos. Devorando-se mutuamente em segredo de toda a corte que, assoberbada de plantio e colheita, sequer se deu pela falta deles. Foi feliz a Moral em viver o que nem imaginava existir. Foi feliz o Desejo por seu grande feito, morar nos olhos da rainha que só lhe tivera desprezo.

Porém, como todos já advinham, houve o momento da virada. O Desejo era imprevisível e não muito afeito à monogamia. A Moral tinha sede de vida, mas devia ter limites, sob pena de se ver desfeita - perder seu reino e seu trono. Então, dando-se conta disso, ela teve medo. E o Desejo, cujo olfato é de um lobo, sentindo-se ameaçado de voltar ao cativeiro, mordeu a Moral na face e fugiu.

Desde então, a Moral chora. Diz que é de dor, mas sabe que é de saudade. Desde então o Desejo é livre, mas vive exilado.

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