domingo, 27 de setembro de 2009

Eros e Psique

do lado de lá do arco-íris está você, sorrindo, de braços abertos,
aguardando a sua chegada.

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Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

Fernando Pessoa

domingo, 20 de setembro de 2009

Saldo da semana

Fiz aniversário essa semana e ganhei: uma garrafinha pra minha bike nova. Um livro de um cronista divertidíssimo, que você não se arrependerá de adquirir aqui. Cinco telefonemas de gente querida. Dois torpedos de loja de roupa. Um post lindo no blog Mulher Solteira. Um happy hour com velhos amigos deliciosamente adolescentes. Um colar de côco do Xingu. O super cool Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Beijos e abraços e mais beijos. E o filme Sétimo Selo, do Ingmar Bergman, que ainda não vi, esperando quem segure a minha mão...

Três perguntas ficam: 1. Mereço? 2. Que mais eu podia querer? 3. Que tal uma pipoca? ;-)

O Homem Maravilhoso

Quatro estudantes me acharam lá na cadeia. Pensei que fosse o fim do mundo. De fato era. Um calor, um medo, uma fome, o corpo todo queimado. Algo muito sério devia estar acontecendo. Mas o quê? Eu me perguntava. Ninguém mais falava comigo, pensei que todos tivessem ido embora.

Na última conversa, enquanto passava a lata amassada pela janela da solitária, o carcereiro me disse que era véspera do feriado de 8 de maio. A esperada Festa da Ascensão. Ele estava feliz, todos os filhos da cidade se reuniriam. Viriam de outros povoados, celebrar e rever o Monte Pelée - o maior atrativo de Saint Pierre. Monte Pelée, o vulcão, sempre foi bonito de se ver. Suas faíscas tornam qualquer festa ainda mais bela.

Quando os rapazes me encontraram, pensei que eram quatro anjos caídos do céu. Fui libertado e socorrido. Do lado de fora, vi a cena desoladora: cinza e lava de vulcão cobriam toda a cidade. Não sobrou nada. Casas e prédios derreteram, a vegetação foi toda queimada.

Soube-se depois por que a cidade não foi evacuada. Os jornais não noticiaram, pois não queriam assustar o povo. Além disso, as eleições estavam próximas. O governador queria votos.

Contaram que o povoado foi destruído em 3 minutos. A cinza e a lava mataram 30 mil pessoas. Apenas eu sobrevivi. Eu, um bandido, um presidiário. Logo que me recuperei, concederam-me regime semi-aberto. Fugi. Desde então, ando louco atrás desse tal governador. Quando encontrar enfio-lhe a faca no meio das costas.

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Em 1902, o vulcão Monte Pelée entrou em erupção. O fluxo piroclástico espalhou cinza vulcânica, a 300 ºC, e lava, a 1000 graus. A cidade de Saint Pierre, na Ilha da Martinica, foi destruída. 30 mil pessoas morreram. O único sobrevivente foi Ludger Cilbaris, um detido. As várias camadas de parede que constituiam sua cela filtraram as partículas de magma. Por ter sobrevivido, Cilbaris ficou conhecido como o homem maravilhoso.

domingo, 13 de setembro de 2009

Cenas do Bloco A

Domingão. Fui buscar meu jornal na portaria. Na volta, segurei a porta pro meu vizinho idoso do segundo andar. E foi assim que ele me disse, já dentro do elevador:
- A senhora não é só bonita. É educada e gentil.
Meu coração disparou: tum-quiticum-tum-quiticum-tum!
Não se fazem mais galanteios como antigamente... :-)

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A liberdade

Ainda escuto o toque de recolher de Pinochet. De dentro da barriga. De dentro da incubadora. De dentro dos braços de minha mãe. Histórias contadas - de que não me lembro - impressas em mim como pegadas no cimento úmido. Eu estava lá. Eu nasci em 73, 5 dias após o golpe.

Houve um tempo em que eu sonhava que dormia dentro de um buraco na parede. Um buraco onde só cabia o meu corpo deitado. Seria algum tipo de prisão, que ainda precisava vazar do meu íntimo mais íntimo?

Por tudo que vi, ouvi e vivi, desconfio da liberdade. A cada dia ela precisa ser reinventada. Pego as chaves, ensaio destrancar o cadeado e volto atrás. Pego as chaves, destranco e vou pelo mundo. Porém, sem esquecer o caminho de volta a minha cela.

A liberdade existe? É uma utopia? Uma loucura irreversível? Deixo-me arrebatar. Ela me apaixona, mas não me corresponde. Por que eu desconfio dela.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

a palavra escrita

Ofício, parecer, memória, ata,
lista de compras, bilhete pra secretária,
email, mensagem, notas de viagem.
Verso da folha. Por que não tem escolha.

Às vezes é um doce, às vezes uma pedrada,
às vezes atrai, noutras repele,
às vezes cativa, às vezes fere.

Pode ser bonita, elegante, empetecada,
mas a palavra escrita é flexa envenenada!